ARTIGO: Reflexões sobre a extensão e a cidade na pandemia


Por em 5 de junho de 2020



Artigo 0101Em junho, completamos três  meses de paralisação das atividades acadêmicas devido a pandemia global pelo novo coronavírus (COVID-19). Vivemos um momento de isolamento, cujos impactos na vida humana, na saúde e na economia global ainda estão por ser conhecidos. Não podemos mensurar as dimensões, sequer as consequências do coronavírus em nossas vidas, nas cidades e na economia do mundo. Certamente, este tempo trará uma experiência humana e uma narrativa nova que ainda será avaliada e descrita em todos os campos disciplinares da ciência. Não seremos os mesmos depois deste processo, nem o mundo, nem os países, nem as cidades, nem mesmo as instituições. Grandes mudanças advêm dos tempos de crise, é só lembrarmos dos tempos do pós-guerra.
Historicamente, são conhecidas muitas pandemias no mundo, desde a varíola no Egito antigo, a peste bubônica na Europa do século XIV, a cólera no século XIX e a gripe espanhola, no século XX.   Suas ocorrências eram sazonais e as transmissões restritas a continentes ou países e vinham por navios, lentamente, num mundo mais rural que urbano, onde os recursos científicos eram menores, a medicina e a ciência ainda não haviam avançando, cenário muito diverso deste em que enfrentamos a pandemia no século XXI.
Hoje, no mundo globalizado, sem fronteiras, em cidades de alta densidade urbana, interligadas pelo transporte multimodal com voos e trens ultrarrápidos, os limites não existem. A medicina avançou, as cidades explodiram e a pandemia tomou proporções inimagináveis.
O mundo do pós-guerra fragmentado, que foi unificado depois da queda do muro de Berlim, no final da guerra fria, em uma grande comunidade europeia, viu suas fronteiras sendo fechadas agora e entrou num novo estado, descrito pelo   filósofo contemporâneo italiano Giorgio Agamben, como “o estado de exceção”, um dispositivo provisório que governos usam para situações de perigo, usado para salvar vidas e restringir as liberdades individuais e fronteiras. Hoje esse “estado” se tornou um instrumento normal de governo, no mundo todo, com toques de recolher, lockdown, isolamento e quarentena. Essas são as palavras das cidades contemporâneas no mundo. Somados ao medo, apreensão, falsa informação, mas também a solidariedade.
A literatura  também   vislumbrou  um futuro distópico,  de controle do estado sobre o  ser humano, aqui cito três livros muito interessantes: em  1932, Aldous Huxley,  no livro “Admirável mundo novo “onde narra a história de uma sociedade futurista, em que seus habitantes passam por um condicionamento biológico, prenúncios do futuro que vivemos agora com o controle da saúde, das doenças e do ser humano e,  no livro “A Peste” em 1947, Albert Camus descreveu, de forma visionária, na cidade imaginária de Orã, na Argélia, uma peste de ratos, como metáfora da Segunda Guerra Mundial, relatando  os sentimentos de quarentena ,tratando do exílio, das perdas das liberdades e da solidariedade humana como salvação e finalmente o clássico “1984” de George Orwell,escrito em 1949 onde a distopia , o controle , a tecnologia, a vigilância e a esperança  se confundem no estado autoritário
No campo da Geografia, o britânico Stephen Graham, em seu livro Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar (2016) fala de ideias essencialmente militares que  são trazidas para o cotidiano da população citadina com o “uso da guerra como metáfora dominante para descrever a condição constante e irrestrita das sociedades urbanas – em guerra contra as drogas, o crime, o terror, contra a insegurança e agora estamos na  guerra contra o vírus . Novas guerras contra inimigos invisíveis. Graham cita como exemplos o uso da identificação em diferentes tecnologias (satélites, câmeras de monitoramento, fiscalização biométrica, uso de GPS nas cidades, que observamos serem usadas em Wuhan, cidade epicentro da corona vírus na China.
O historiador israelense  Yuval Noah Harari, autor  do  livro “Sapiens – Uma breve história da humanidade, Homo Deus e 21 lições para o século XXI, ressalta que vários aspectos da mobilização global do Covid  terão implicações na forma como organizamos nossos sistemas de saúde e como  estruturamos a economia, a política e a cultura para o futuro. Para Harari, os dados ou o Big Data tem a ver com o futuro da espécie humana e com o futuro da própria vida o controle de dados e da produção precisam ser observados. Tudo ficou concentrado na China e quando precisamos de componentes eletrônicos para os respiradores por exemplo, temos problemas e falta de desenvolvimento tecnológico de baixo custo para competir ou ao menos garantir o suprimento de uma demanda mínima.  A própria globalização também será redimensionada, os países começam a reabrir as fronteiras em blocos.
Diante desta perspectiva, deste novo cenário que se desenha de forma emergente, impactante, angustiante e sem tempo de reflexão ou preparo, como podemos nos ajustar para uma resposta?
Qual o papel da Universidade e mais especificamente da extensão em tempos de pandemia?  Como podemos ajudar a comunidade, exercendo o papel destinado às Universidades de serem agentes transformadores de conhecimento e de realidades em face a um inimigo invisível? Diante desta perspectiva como nós professores universitários podemos contribuir para o debate e dar respostas a este desafio
Em minha área de atuação penso, como o arquiteto e urbanista pode colaborar? Como serão as cidades pós pandemia? Como daremos aula nas universidades púbicas, diante da dificuldade de acesso à internet pelos alunos? Como usaremos as ferramentas on line de forma proativa e inclusiva? São muitas perguntas sem respostas!
A pandemia já desenhou algumas dimensões e desafios essenciais no momento: a falta de infraestrutura do sistema de saúde, o despreparo das cidades em termos habitacionais, urbanísticos e de saneamento a necessidade de proteção contra a virulenta transmissão, o caos da informação, o desejo de resposta da ciência com a cura, a solidariedade humana como forma de enfrentamento e a necessidade de repensar a economia.
Em seu mais recente livro ,publicado este mês, “A cruel pedagogia do vírus” , o sociólogo português Boaventura de Souza Santos[1] (2020), faz uma análise do cenário da pandemia face aos três desafios já  apontados por ele  do mundo atual: o capitalismo, o patriarcado e o colonialismo,  que continuam a nos desafiar no mundo contemporâneo   sob formas ocultas   ou novas expressões. Ele elenca quem são os principais atingidos pela pandemia, ressaltando que: “Qualquer quarentena é sempre discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população”. Assim, ele destaca alguns grupos mais vulneráveis como as mulheres, considerando o aumento da violência durante o isolamento; os trabalhadores precários, informais, ditos autônomos ou os trabalhadores da rua, os sem teto, os moradores das periferias pobres das cidades, os refugiados, os imigrantes, os deficientes e os idosos. Finalmente, somos todos atingidos de alguma forma, pela falta da infraestrutura de saúde, pela perda do trabalho, pela queda da economia. O vírus atingiu a todos os seres humanos e em cheio.
Santos(2020) aponta alguns caminhos, refletindo sobre como a pandemia nos faz pensar em alternativas ao modo de viver, de produzir, de consumir e de conviver nestes primeiros anos do século XXI, reflete ainda sobre a questão ambiental e finalmente deixa perguntas: Como ficarão os empregos? Quando se recuperarão os atrasos na educação e nas carreiras? Desaparecerá o Estado de exceção que foi criado para responder à pandemia tão rapidamente ao final dela? Conclui que só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios será possível começar a pensar numa sociedade em que humanidade assuma uma posição mais humilde no planeta que habita (Santos 2020).
Nesta perspectiva, de pensar uma sociedade mais humana, destacamos alguns desafios que observamos, apontando algumas pequenas ações e soluções, que vislumbramos nos debates sobre a experiencia já vivida nestes meses: o que de fato precisamos para o enfrentamento da pandemia?
Sem dúvida, precisamos de orientações médicas, fundamentais ao enfrentamento do vírus, como as orientações de saúde básica, higiene e fortalecimento da imunidade, com a ajuda dos profissionais das áreas de medicina. Essa poderia ser uma ação de extensão dos cursos da área médica.
Estamos diante de uma nova dinâmica diária, há uma nova rotina em tempos de isolamento na casa, de afazeres, exercícios e planejamento, nesse campo especifico poderiam contribuir os alunos e professores das áreas de administração, da educação física e sobretudo psicólogos; o apoio psicológico na pandemia é muito importante. Algumas questões estão se agravando no isolamento como a violência contra mulheres e crianças, precisamos combater essa violência, estabelecer redes de proteção e apoio, os estudantes de direito poderiam dar orientações e aconselhamento as mulheres em risco.
E a atividade de ensino? Precisamos aprender com as novas ferramentas da tecnologia on line para alcançarmos nossos alunos pelas plataformas (Zoom, Siguema, Google meet, Hangout, etc), além de garantir a eficácia do ensino-aprendizagem nesse modo. Esse é um desafio da Graduação, do Núcleo de Tecnologias para a Educação, do programa graduação 4.0, ou seja, expandir aos cursos presenciais essa prática. Podem atuar também os cursos de computação e pedagogia, que poderiam auxiliar   alunos e professores a utilizar as novas ferramentas de aulas atingindo os objetivos pedagógicos almejados.
A cidade está em processo de mudança, precisamos pensar as novas questões urbanas e arquitetônicas, nesse ponto me coloco como arquiteta e penso, como o curso de arquitetura pode contribuir nesse momento de mudança? Partindo da casa para a cidade, várias questões são importantes: precisamos pensar sobre o espaço para o trabalho em casa, nem sempre considerado nas habitações, refletir sobre as medidas de higienização das habitações, condomínios e espaços públicos das cidades, pensar nos desafios dos bairros densos, periféricos e populares sem infraestruturas básicas de água e saneamento, na cidade dos incluídos e dos excluídos. Precisamos refletir sobre nosso plano diretor e estatuto da cidade, e como poderiam se atualizar diante destes novos desafios? A França, por exemplo, está estimulando o uso de bicicleta no retorno do isolamento e nossas cidades estão preparadas para ter ciclovias para o transporte ao trabalho?  E as áreas destinadas à expansão dos postos de saúde e hospitais, são consideradas em nosso planejamento? E os novos projetos de casas, apartamentos e habitações populares, não deveriam contemplar novos espaços, áreas de desinfecção. Quem sabe a assessoria técnica de arquitetura e engenharia poderia colaborar nesse sentido, integrando universidade e empresa pública e privada num esforço coletivo.
E os prédios públicos? Como enfrentar a desinfecção dos equipamentos para áreas institucionais, que medidas sanitárias os edifícios públicos e condomínios deveriam tomar daqui para frente? Professores da UEMA já estão desenvolvendo respiradores auxiliares, aplicativos para o apoio das autoridades de saúde e segurança e câmaras de desinfecção.
Como planejar novos protocolos de higiene de mercadorias, entregas e feiras e supermercados? Como planejar o retorno às aulas na universidade com segurança e saúde? Áreas da engenharia poderiam contribuir nestes estudos e ações.
E as comunidades carentes, periféricas, como ajudá-las em soluções urbanas e arquitetônicas, de saúde pública e de direito em prol da saúde e salubridade?  E as redes de apoio e solidariedade para doação de medicamentos, alimentos e itens de higiene que podem ser articuladas em vários setores. Já se observam várias iniciativas inclusive dentro da UEMA, mas podem ser ampliadas. São muitos temas e assuntos para vários projetos de pesquisa e   extensão, onde estudantes e professores poderiam colaborar
Essas são apenas algumas reflexões, dentre tantas nos diferentes campos disciplinares onde visualizamos várias possibilidades de   ações solidárias e projetos de extensão e técnicos que poderiam se converter em benefícios para a comunidade acadêmica e também para profissionais.
Como diz o Professor honoris causa da UEMA, Boaventura Santos: “precisamos construir uma sociedade mais humana, um mundo melhor, que toda a dor, toda a perda, se converta em reflexão e em amadurecimento para construção de uma sociedade mais justa”.


[1] Santos, Boaventura de Souza.“A cruel pedagogia do vírus” ,Ed Almedina , Coimbra , 2020

Por Profa.Grete Pflueger 

Profa Adjunta IV do Curso de Arquitetura e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioespacial e Regional – PPDSR – UEMA.

 



Últimas Postagens